Algoritmo: Um novo meio de alienação e exploração
A armadilha da dopamina que transforma sua vida em mercadoria
A tecnologia, seja ela uma ferramenta desenvolvida pelos primeiros povos coletores para ajudar na agricultura, ou as ferramentas digitais que estão disponíveis hoje em dia, é marcada por uma contradição: promete uma libertação, mas pode nos aprisionar.
Uma enxada mudou o modo de produção dos homens, fornecendo maior velocidade para o tratamento da terra, disponibilizando um tempo maior para outras atividades.
Uma máquina de tecelagem vaporizada do início da revolução industrial, novamente mudou o meio de produção, mas ao contrário da enxada, ela alienou o trabalhador em relação à sua produção. O trabalhador não se reconhece mais no produto final, a mercadoria. E assim por diante, tecnologias desenvolvidas nos setores de energia, comunicação e logística, muitas vezes libertaram, mas outras tantas vezes, aprisionaram os homens em sistemas permeados por ideologia da classe dominante.
Muito se fala de tecnologias disruptivas. É como se fosse um mantra repetido sem entender o que significa isso. Talvez a última tecnologia disruptiva tenha sido a invenção da máquina de lavar roupas, que libertou milhões de mulheres ao redor do mundo, de um trabalho exaustivo, que ocupava uma boa parte do seu dia, impossibilitando que elas conseguissem estudar, ler ou participar de outras atividades.
Quando se repete incansavelmente que o aplicativo de compartilhamento de automóveis, ou que o aplicativo de aluguel instantâneo são disruptivos, logicamente isso é uma falácia. Uma quebra de lógica. O Uber é uma evolução (não que seja melhor) do taxi. O AirBNB é uma fusão de hotel e administradora de imóveis. O WhatsApp é a continuidade das comunicações "rápidas" como o telégrafo, e esse sim, o telégrafo, foi uma invenção disruptiva, pois as informações que demoravam dias para circular de um ponto para ou outro, fez com que isso fosse feito em segundos. Portanto, gerar facilidade em chamar um taxi, alugar um quarto de hotel, pagar contas sem ir no banco, fazer compras online, não são tecnologias disruptivas. E a base de tudo isso, são os algoritmos.
O capitalismo consegue sempre piorar qualquer coisa. O caso dos algoritmos é a expressão máxima de um modelo exploratório. Os algoritmos são desenhados para explorar os pontos vulneráveis da psicologia humana, gerando um processo vicioso em busca da validação social. Esses códigos liberam dopamina através de curtidas, comentários e visualizações. Não é um produto de engenharia tecnológica, mas sim uma estratégia para a captura da atenção, transformando usuários em máquinas que repetem o mesmo movimento infinitamente, gerando lucros para as empresas de tecnologia que utilizam desse artifício. A tecnologia, como ferramenta desaparece, dando o lugar para um vetor de vício, onde a vida do usuário é mediada por redes sociais que monetizam o tempo e a instabilidade emocional de seus usuários.
Essas empresas que utilizam os algoritmos, exploram as fissuras psíquicas, onde a complexidade humana é trocada por estímulos que gerem satisfação. Mesmo que seja uma imitação. Eles são mecanismos que manipulam o inconsciente, através de pulsões primárias, como o desejo de reconhecimento (ligado ao Eros do Freud) e a compulsão da repetição (o Thanatos também de Freud). Ao receber uma notificação, ou curtir uma postagem, as gratificações são instantâneas, liberando a dopamina, que ocupa o vácuo deixado pelas relações humanas concretas. Essa ilusão de conexão com dezenas de amigos através das redes sociais, mascara uma solidão estrutural, onde o usuário busca apenas a validação do outro, que na verdade é a ação do algoritmo que faz essa ligação, e com o histórico de ambos os lados, a sensação de gratificação é contínua, porém efêmera.
Essa gratificação contínua lembra uma neurose obsessiva, onde o rolar de tela, o atualizar de feed, o abrir e fechar entre vários aplicativas é um ritual para aliviar a angústia de existir em um mundo permeado por algoritmos que direcionam essas ações.
Assim como o trabalhador perde o controle sobre o que produz, através da alienação, o usuário perde a sua autonomia sobre a sua atenção. A sua atenção é orientada apenas para o lucro das empresas que promovem isso. É a abstração crescente da materialidade no capitalismo. Nuvem, streaming, ebook, jogos e comunicação em tempo real, são mercadorias de consumo imediato e intangíveis. É o deslocamento da mercadoria, do universo do tangível para o efêmero. E tudo isso com o algoritmo fazendo o que sabe fazer de melhor, abusando das fragilidades humanas. Esse algoritmo assume o papel de líder, um mediador invisível que influencia os desejos e comportamentos nas redes sociais.
Essa desagregação provocada pelo capitalismo atual, onde a mercadoria está em mutação, primeiro tornando produtos tangíveis em serviços, depois em plataformas e essas no seu fim, tornando-se em meios de controle, promovendo a ideologia da classe dominante. Quando o próprio público se torna o seu próprio artista, o conteúdo criado pelo usuário é apropriado pelo algoritmo, convertendo em dados e alimentando um banco de dados para auxiliar na predição e otimização. Predição essa que não é um tipo de futurologia, mas sim um meio de influenciar os usuários, levando eles a crerem que o serviço de streaming, ou a rede social adivinhou o que ele queria ou pensava. A mercantilização da vida, que antes era apenas no horário comercial, agora é 24 horas por dia. Se o usuário produz ou consome conteúdo nas plataformas, de alguma maneira ele está gerando riqueza através do seu trabalho, seja gerando o conteúdo ou consumindo. Não há mais cultura, arte ou música. Há apenas mercadoria.
No final desse processo, o resultado é o mesmo. Os algoritmos são ferramentas de acumulação capitalista, que convertem até as horas de lazer em horas de produção. Fazendo um paralelo com o que Marx revelou mais de cem anos atrás, os dados e engajamento são valores de troca, apropriados pelas empresas de tecnologia, e uma “mais-valia digital” é extraída não apenas do trabalho organizacional e formal, mas também da vida cotidiana, transformando os afetos, relações e ócio em mercadorias.
Nessa “alienação digital”, se manifesta a separação entre o usuário e o valor dos seus dados. O algoritmo, um fetiche enquadrado como neutro, encobre as relações de exploração, afinal as plataformas de streaming, vendas, redes sociais não são entidades autônomas, mas a continuação de uma estrutura capitalista, com a intensificação do controle sobre os desejos, e conseguindo trabalhadores de likes e compartilhamento com um valor próximo do zero.
A vida é transformada em números, sem contar a complexidade do usuário que está na frente da tela, reforçando desigualdades. Os algoritmos consolidam hierarquias. São usuários de classes mais empobrecidas que consomem o conteúdo das classes mais abastadas. Em vez de oportunidades de conhecimento ou de entretenimento, o que resta mesmo é a vida de quem consome e de quem é consumido sendo apenas mais uma mercadoria. Não há neutralidade nessa mecânica. Todos estão exatamente onde deveriam estar, cumprindo suas tarefas, conscientes ou não. Quem tem o algoritmo na mão, tem essa mecânica e pode alterar conforme a necessidade.
Do lado do usuários, o ônus é imenso. Ocorre uma dependência psíquica, emocional e química em busca de uma validação social. Recursos finitos são investidos nessa mecânica infinita. Com a chegada da inteligência artificial, isso ficou mais evidente. Se essa "nova" tecnologia fosse utilizada massivamente para algo útil, que fosse para o bem geral da humanidade, o esforço valeria a pena. Mas utilizar essa tecnologia para ajudar a escrever um email, fazer uma conta, ou qualquer outra coisa similar, é "queimar combustível à toa".
Já do lado de quem trabalha nessas empresas, a lógica capitalista é reforçada constantemente. Metodologias como "construir, medir e aprender" demonstram que a velocidade está acima de tudo. Inclusive da qualidade. E isso é exportado para o mundo real, quando ocorrem erros em procedimentos médicos, ou manutenções de equipamentos, ou gerenciamento de fluxos de bens. A política de autonomia das equipes é apenas uma ferramenta para tornar esse grupo de pessoas menos suscetíveis à distrações. Não há autonomia. As pessoas são novamente levadas à crer que tomam suas decisões, mas na verdade elas já estão na posição que a empresa deseja, e fazendo o que deve ser feito. É uma adaptação do taylorismo, trazendo uma fluidez organizacional, porém muito bem delimitada e especializada.
Essa utopia tecnológica se limita na realidade material. Algoritmos, plataformas, tecnologias, metodologias prometem produtividade e eficiência, através da consolidação das estruturas de poder que exploram a psique humana, alienam e anulam o trabalho criativo e colocam a vida dos usuários ou não em risco. Quando alguém morre em procedimento estético, ele não morreu apenas pela incapacidade de quem estava realizando o procedimento. Mas foi um conjunto de fatores, que vão desde a insatisfação com o próprio corpo, a falta de perspectiva de um estilo de vida diferente, até a publicidade do serviço prestado. No fim, morreu de internet. Tudo via algoritmo.
Os algoritmos são os curadores da cognição, criatividade e pensamento crítico da atualidade. Playlists, recomendações de conteúdo, feeds personalizados e microtargeting são a aparência de uma individualidade que não existe. É uma ilusão de escolha que na verdade é homogeneizada e compartilhada com milhões de outras pessoas. Os usuários que acreditam na sua singularidade, estão dentro de uma armadilha que reproduzem estereótipos moldados por sistemas que visam o controle.
É a submissão da vida humana e social à lógica da eficiência.
Enquanto os "usuários" aceitarem essa posição de serem apenas um dispositivo, uma mercadoria e não reconhecerem que a tecnologia só tem valor na manutenção das estruturas de poder e não para a sua emancipação, eles serão explorados e alienados.
Disruptivo não é aumentar a quantidade de dopamina no corpo de um usuário, mas sim construir ferramentas e ambientes que ampliem a autonomia humana, o diálogo, a troca de saberes e revisão dos meios e fins que são fornecidos por essas estruturas.
A verdadeira disrupção só ocorrerá quando a tecnologia for desvinculada da lógica do capital, permitindo que sirva à emancipação — não à exploração da vulnerabilidade humana.
Enquanto isso, seguimos escravos de uma máquina mantida pela classe dominandte, que nos faz acreditar que somos livres, manipulados por pulsões, padronizados pela indústria cultural e aliendado por relações de produção digitais.
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