O sociólogo José de Souza Martins em seu livro “A Sociologia do Desconhecimento” parte de uma premissa que a exclusão não é um fenômeno acidental, mas sim uma estratégia de ocultação para a reprodução capitalista. Segundo o autor, a consciência social dominante naturaliza as desigualdades e normaliza a exploração, através de um processo que torna inevitável esse fenômeno. Esse processo está ligado à alienação de Karl Marx, mas também tem uma adição de contornos raciais, regionais e históricos nas sociedades periféricas, ou países em desenvolvimento, quando se fala da exclusão.
Para Marx a exclusão é inerente à acumulação capitalista. É o exército industrial de reserva como ele apontou em “O Capital”. É uma massa de trabalhadores desempregados que pressionam os salários para baixo, garantindo a mais-valia. Isso é estrutural e necessário ao sistema capitalista. Em 2023, segundo o IBGE, existiam 12,7 milhões de pessoas desempregadas no Brasil. Quando se faz um recorte dessa massa de desempregados, uma boa parcela dessas pessoas são negras e periféricas. Segundo Engels, a miséria, a exclusão, não é um erro do sistema capitalista, mas uma mercadoria necessária.
Se não fosse isso, as plataformas de trabalho precarizado não teriam se desenvolvido com tanta força. Do lado do capital, sai de cena o capitalista que investe em uma estrutura física e outros ativos, e entra em cena o capitalista que investe em uma plataforma digital apenas para unir a mercadoria consumidor e a mercadoria trabalhador sob demanda.
Um exemplo prático é uma empresa de logística. No passado, essa empresa precisava investir em espaço físico para armazenar as entregas, precisava comprar veículos para realizar as entregas, trabalhadores para administrar e operar a logística, além de ferramentas de suporte, como segurança, rádios para comunicação, etc. Hoje essa mesma empresa não precisa investir nessa proporção. O centro da operação que eram os meios físicos de gerenciamento e operação, foram substituídos por meios digitais, onde a mercadoria consumidor pede um transporte de um objeto e a mercadoria trabalhador é utilizada, e paga, apenas pelo percurso que ela vai fazer, sem a necessidade de ter um vínculo com a empresa logística. Além disso, o investimento em veículos, segurança e comunicação, está todo do lado da mercadoria trabalhador. Para o capital, esse é o mundo perfeito.
No Brasil, outros elementos perversos são adicionados quando se analisa a exclusão. Segundo Florestan Fernandes, isso está diretamente relacionado com o colonialismo, pois mesmo com a abolição da escravidão em 1888, os negros foram lançados à margem da sociedade, sem acesso à um lugar para morar, trabalhar ou estudar. Foram devidamente excluídos e se tornaram uma mercadoria essencial para subempregos precarizados, como diaristas, faxineiros entre outros. Entender que 75% dos 10% mais pobres do país são pretos e pardos é fundamental para esclarecer que todos estão onde deviam estar.
Quando os dados são relacionados com o sistema prisional, segundo o INFOPEN, 67% são negros e pobres. Mais uma vez, todos estão onde o capital quer. Como diz Angela Davis, é um mecanismo de controle sobre os corpos negros e pobres.
Leis e decretos, como o congelamento de gastos sociais por 20 anos, arcabouço fiscal e outros mecanismos que são criados para transferir dinheiro público, para o bolso das 5 mil famílias mais ricas do Brasil, apenas reforçam essa exclusão. Segundo o INEP a taxa de evasão escolar das escolas públicas periféricas chegam perto de 40%, enquanto que nos colégio privados, gira em torno de 1%. Mais uma vez, a construção de que todos estão onde devem estar é reforçada por essas políticas tributárias e orçamentárias, que são o reflexo de uma elite colonialista com o seu próprio povo.
Milton Santos, em seu livro “O Espaço do Cidadão” mostra como a organização geográfica reflete e reproduz desigualdades. A classe média brasileira busca “privilégios particulares” e não direitos universais ou sociais. A classe média não se reconhece como cidadão. A cidadania é fragmentada para as classes. Por exemplo, enquanto a elite e classe média tem acesso à um privilégio básico como o saneamento de águas e esgotos, cerca de 17 milhões de brasileiros vivem sem água encanada ou rede de esgotos. O que seria um direito universal, se torna um privilégio.
O capitalismo no Brasil é uma máquina de exclusão. Segundo Marx, a exclusão é funcional para o capital. Para Milton Santos ela define os espaços no país. Para Florestan Fernandes, quando a sociedade, através de ferramentas da sociologia, revelar essas estruturas que mantêm metade da população em insegurança alimentar, será possível reagir. Enquanto o capitalismo estiver vigente, a inclusão será um mito.
Essa revelação, através da análise da sociedade capitalista brasileira, reconhece que o capitalista não é apenas o detentor do capital, mas é um dos agentes do capital. É esse agente que gerencia um bem socialmente produzido, que está na origem do trabalho, que é o outro agente do capital, através da classe trabalhadora. O processo capitalista que depende da exploração sistêmica de um agente pelo outro, transcende qualquer outro processo que visa incluir que é excluído.
A expressão da modernidade periférica descrita por Florestan Fernandes em “A Revolução Burguesa no Brasil” expõe um projeto excludente que perpetua desigualdades culturais e políticas, mascarando-as sob retóricas de desenvolvimento.
Martins utiliza de um exemplo muito prático de como a exclusão é sistemática, e de como pode existir resistência. Ao retratar uma moradora de rua em São Paulo, onde simbolicamente ela construiu uma casa com objetos descartados, inclusive com divisões imaginárias entre quarto, sala e cozinha, mostra que esse ato não é apenas uma resistência imaginária, mas um sintoma de anomia gerada dentro do capitalismo. Uma anomia que é recebida pelas classes dominante como algo natural. É o darwinismo social mais puro. Alguns corpos são perdidos durante o progresso de uma sociedade. Misteriosamente, e ironicamente, esses corpos são em sua grande maioria, pobres e pretos.
A frase “se não há exclusão, não existe o problema de inclusão” é central para compreender a dialética do capitalismo. Para Marx essa é uma categoria estrutural do capitalismo, que depende da criação de uma população excedente, um exército industrial de reserva que mantém os salários mínimos e fragmenta a classe trabalhadora. É mais do mesmo.
Florestan Fernandes complementou o pensamento de Marx, ampliando essa análise destacando que no Brasil, a exclusão racial e social é uma herança colonial. A abolição não rompeu a lógica da subalternização. É a colonização do próprio povo. Angela Davis complementa esse pensamento, onde a inclusão é apenas um mito funcional para que o sistema inclua parcelas dos excluídos apenas para reproduzir as hierarquias, que se utilizam do racismo, patriarcado e exploração da classe trabalhadora.
Um exemplo simples dessa análise, é a “inclusão digital”. Nas redes sociais, a solidão e anonimato são frágeis. Os dados são apropriados pelo capital. O direito à anonimidade, o direito de ser anônimo perante empresas privadas é comodamente esquecido. Quando empresas de tecnologia recebem milhões utilizando os dados de usuários, suas identidades são transformadas em mercadoria. A autonomia e o anonimato é substituído pela alienação, em uma relação de dominação. A inclusão digital se torna mais uma ferramenta para o capitalismo extrair o máximo possível da classe trabalhadora. Mesmo em seu horário de lazer, as pessoas continuam trabalhando “de graça” para as grandes empresas de tecnologia, sob as mais variadas formas.
Incluir os direitos humanos, na forma que estão constituídos atualmente, no centro do debate da inclusão é apenas mais uma ferramenta do capital para reproduzir uma falsa consciência, uma falsa sensação de que existe uma opção para quem está excluído, quando esse se torna incluído por meritocracia, geralmente adquirida em algum programa filantrópico ou assistencial. É a reprodução infinita do capitalismo, que não não é ingênuo, e através de mecanismos assistencialistas, identifica os agentes que são mais aderentes à hierarquia, e são transformados em novos agentes que foram incluídos pelo seu esforço. A verdadeira inclusão é a extinção da propriedade privada dos meios de produção e os dados obtidos por empresas de tecnologia, sendo a primeira condição para emancipação da classe trabalhadora.
Portanto, a exclusão é uma ferramenta do capitalismo. Toda tentativa e acerto na inclusão dessas pessoas é limitada. É apenas uma imposição da ideologia da classe dominante, para que o capitalismo seja entendido uma sociedade livre e com mobilidade social e justa para quem merece. Dignidade só será alcançada quando raça, classe e gênero não estiverem ligadas à dinâmica da exclusão e inclusão. Inclusão é uma categoria fetichizada, que oculta a acumulação de riqueza de poucos, em detrimento de todos.
Apenas uma prática revolucionária e uma prática que desvele os verdadeiros significados do porque e para que as populações são excluídas podem reverter essa situação.
E não com reformas que maquiam e perpetuam a exploração de uma classe pela outra.
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